A homenageada

Lygia Fagundes Telles: uma fiandeira de palavras

Flávio Adriano Nunes (UFMS)
Geovana Quinalha de Oliveira (UFMS)

     O escritor Caio Fernando Abreu afirmou, certa vez, que Lygia Fagundes Telles compôs uma literatura legítima porque ela era “basicamente uma contadora de histórias, no melhor e mais vasto significado da expressão” (ABREU, 1996, s.p.). Certamente, a autora é uma fiandeira de histórias desdobradas em romances, contos e crônicas cujos enredos se lançam ao mistério, ao fascínio, à crítica social, às complexidades humanas e aos desafios do tempo histórico. Lygia escreveu por mais de seis décadas, sempre transgredindo muros e construindo pontes entre o eu e o outro para, de algum modo, fazer de sua literatura um lugar de travessias e encontros, como ela mesma declarou: “eu tento me desembrulhar, desembrulhando meu próximo. Nesse ato de me desembrulhar, faço do próximo meu cúmplice, meu parceiro” (Telles, 2000, p. 3).

    Integrante da Academia Brasileira de Letras, primeira mulher brasileira a ser indicada ao prêmio Nobel de Literatura, vencedora do prêmio Jabuti por quatro vezes e ganhadora do prêmio Camões pelo conjunto de sua obra, Lygia é categórica quando diz: “eu arrisco na palavra” (Telles apud Lamas, p. 102.). A tecelã de palavras que existe em Lygia é reconhecida, portanto, por ela própria.

      A ficção da autora engloba expressões políticas, históricas, sociais, éticas e estéticas cujas marcas constituem um projeto intelectual marcado por resiliências frente a um mundo que habitamos, mas que, muitas vezes, não nos pertence, porque não abriga nossas singularidades e nossas diferenças, como atestam suas tantas personagens femininas e as angústias de se viver em uma sociedade patriarcal permeada por falsos moralismos. Nessa direção, a obra de Lygia Fagundes Telles evidencia que a literatura tem o direito de dizer tudo, como afirma o filósofo franco-argelino Jacques Derrida, em Paixões (1995), inclusive coisas que “não podem ser ditas”. Não por acaso, a autora desafiou a tesoura da censura em 1973 com a publicação de As meninas, romance que segundo o censor, por ser chato demais, abandou a leitura; o que permitiu à escritora brasileira levar a termo seu projeto est(ético) em representar determinados eventos ocorridos durante o período da ditadura militar (1964-1985) no Brasil. Este ato de coragem inscrito à literatura brasileira demonstra o posicionamento da escritora que denunciava o sequestro da democracia e o quão sombrio foi este período, ainda hoje aclamado por alguns, para a sociedade em geral.

    Para Lygia, a literatura tem uma função: a de elucidar questões que nem sempre estão claras nos discursos hegemônicos, sejam eles da história oficial ou jornalísticos. Em entrevista a José Castello em 1998 e republicada em 2022, por ocasião do falecimento da escritora, perguntada sobre o efeito da onda moralista no país, ao que responde: “Outro dia, numa entrevista, perguntaram-me o que eu penso do amor homossexual. A vida é tão breve, a felicidade tão rara, meu Deus, deixem as pessoas fazer o que quiserem com seus corpos […] a liberdade no amor deve ser absoluta” (Estadão, 2022). A escritora militou dentro e fora dos limites do texto literário, em defesa da pessoa humana, da liberdade, dos afetos, das alegrias tantas vezes sufocadas por um status quo social que enjaula, persegue, elimina o outro – aqui, entendido como aquele que diverge e/ou subverte o que foi estabelecido como correto/adequado.

    Ainda, na mesma entrevista, José Castello questiona: A literatura pode ajudar o mundo? E Lygia Fagundes Telles responde categórica: “Espero que a minha palavra possa ajudar um pouco. Mas isso é diferente de ver a literatura como um manual de felicidade e sucesso” (Estadão, 2022). Tal resposta evidencia a lucidez intelectual de Telles que, sem ostentação e exibicionismo literário-intelectual, compreende que a literatura não pode resolver os problemas do mundo, mas pode: abrir frestas no mundo para possibilidades outras; evidenciar encontros e desencontros forjados nas coisas contingenciais; demonstrar que os afetos humanos, sejam quais forem, devem ser vivenciados.

     Lygia, portanto, é uma escritora desterritorializada de seu tempo e espaço; é uma mulher atemporal, da agoridade. Lygia é urgente. Lygia é necessária. Sempre Lygia. Para sempre Lygia.

 

Referências

ABREU, Caio Fernando. A primeira dama da literatura. Zero Hora, Porto Alegre, 06 jan. 1996.

CASTELLO, José. Lygia Fagundes Telles: ‘Em literatura não se deve fazer distinção de sexo, só de qualidade’. Estadão, São Paulo, 02/04/2022.

DERRIDA, Jacques. Paixões. São Paulo: Papirus, 1995.

LAMAS, Berenice Sica. Lygia Fagundes Telles: imaginário e a escritura      do duplo. 2002. 287 f. Tese (Doutorado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.

TELLES, Lygia Fagundes. Escrevo para criar cúmplices. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 abr. 2000. Caderno Idéias, p. 3. Entrevista concedida a Leneide Duarte.